Cousas do Mar
O canto V, canto central do Poema, é dedicado na sua totalidade à narração da viagem de Vasco da Gama, na parte ainda não narrada, isto é, desde o seu inicio em Belém, até Melinde, ponto da costa Africana em que Vasco da Gama se encontra.
É neste episódio que o narrador, que é o próprio herói da acção, narra os perigos e ameaças que enfrentaram durante a viagem para chegar até ali.
Sendo o narrador humano, só lhe é perceptível a realidade visível da luta dos homens contra as dificuldades, os Deuses estão ausentes desta narração. Portanto, como já foi referido, é no decurso da narração da sua viagem que Vasco da Gama e os marinheiros se vão confrontar com os inúmeros perigos e as gigantescas dificuldades da penetração em mares desconhecidos, num elemento que não é o seu: a Água.
E quais são essas dificuldades?
· Partida das naus e saudade da paisagem pátria da família: "Já a vista, pouco e pouco se desterra/ Daqueles pátrios montes, que ficavam; /Ficava-nos também na Amada terra /O coração, que as mágoas lá deixavam.... Não vimos mais, enfim que mar e céu"
É de notar a expressividade com que está construída esta estrofe " marcada pelo ritmo lento do lento afastamento da costa. Isto é conseguido pela utilização do advérbio "já", do Presente histórico "desterra -, deixavam, prolongando uma acção lenta e penosa; pela visualidade dos elementos que marcam esse lento e progressivo afastamento. Os dois versos finais desta estrofe marcam a transição rápida, brusca do horizonte natal desaparecido, surgindo, como que naturalmente, o pretérito perfeito: escondeu; vimos.
· Fenómenos Naturais
Nova dificuldade se apresenta, uma vez ultrapassado o Equador: o contacto com novos fenómenos naturais, desconhecidos os sábios Europeus que nunca por lá haviam andado e, portanto só conheciam a Natureza pelos livros e por especulação: ..."Só por puro engenho e por ciência/Vem do Mundo os segredos escondidos" (V, est. 17)
São fenómenos com que os marinheiros se depararam e que são descritos com minúcia por Vasco da Gama. Este tem o cuidado de os descrever de forma realista e pormenorizadamente, de modo a que não restem dúvidas sobre a sua real existência e a razão que assiste aos "rudos marinheiros / que têm por mestra a longa experiência" que, não entendendo o que vêm, têm a vantagem sobre os Antigos sábios, o facto de terem presenciado e terem visto.
Estas "cousas do mar", são aquilo que é conhecido por "fogo de Santelmo" e "tromba marítima".
Com o objectivo de marcar a visualidade destes fenómenos são utilizados diversas vezes pelo narrador o verbo "ver", comparações sugestivas e imagens.
Estes dois fenómenos, apesar do medo que suscitavam, representaram dois espectáculos naturais deslumbrantes, testemunho espectacular da presença avassaladora do Maravilhoso Natural. É feito também um desafio aos homens da ciência livresca, não experimental, o saber académico dado pelos livros entra em confronto com a experiência directa que a vida proporciona: "vejam agora os sábios na escritura/que segredos são estes na Natura!" (V, est. 23).
O espirito científico e racionalista do Renascimento, que prezava antes de mais a observação directa dos fenómenos da Natureza, está aqui explicitado: "vi, claramente visto, o lume vivo". Lume vivo que surge para os marinheiros como um milagre: "cousa, certo, de alto espanto".
Camões valoriza a observação directa dos fenómenos e insiste na sua veracidade dizendo: "Eu o vi certamente visto (e não presumo/que a vista me enganava)", critica aqueles que só nos livros buscam o saber e troçam, descrentes, de quem relata fenómenos desconhecidos.
Continuando a narrar a viagem, Vasco da Gama não esqueceu de referir o "novo instrumento do Astrolábio" (est. 25, um dos instrumentos que as necessidades da navegação propiciaram). E os contactos, nem sempre fáceis, com as populações costeiras, nem sempre favoráveis à penetração de "invasores"- surge então o bem humorado incidente em que o protagonista Fernão Veloso, o "valentão" o ousado marinheiro é obrigado a regressar correndo, a bordo, fugindo do ataque dos negros, sujeitando-se á ironia dos companheiros. (V, est. 31-35)
As naus portuguesas navegavam há 5 dias, estando junto do cabo das tormentas, quando subitamente aparece, perante o espanto dos marinheiros uma nuvem escura e imensa, que escondia o céu; o mar bramia e agitava-se, pressagiando uma ameaça terrível. Este episódio assustou grandemente os portugueses que levou Vasco da Gama a pedir ajuda divina.
É de notar, na estrofe 38, a expressividade e musicalidade (sonoridades nasais, prolongando em eco de natureza onomatopaica o som do mar alterado; tanto mais que repetem os sons em "R- e se marca o contraste entre vogais abertas e fechadas) do verso: "Bramindo, o negro mar de longe brada".
Desenha-se, então, a imensa figura do Adamastor, gigante de aspecto horrendo eirado que Camões descreve minuciosamente: "rosto carregado", "a barba esquálida", "os olhos encovadas", "os cabelos desgrenhados e nespos" e"cheios de terra", "a boca negra", "dentes amarelos" (...)
O monstro num tom de voz"horrendo e grosso",interpela os marinheiros aterrorizados, reduzidos pela sua presença avassaladora à dimensão de seres frágeis e indefesos. Censura-lhes a ambição, a constante procura do novo, a ousadia de invadirem dominios que já mais tinham sido atravessados. Por tudo isto Adamastor profetiza episódios terríveis: "Naufrágios, perdições de toda a sorte/que o menor mal de todos seja a morte!" (V, est. 44)
Vasco da Gama fica saber quais seram os destinos fatais de Pedro Alvares Cabral, Bartolomeu Dias D. Fernando de Almeida e Manuel de Sousa Sepúlveda, com sua mulher e filhos que iram morrer naquele local.
Mas, longe de provocar o recuo dos navegadores, o Gigante vai ver-se interpelado, numa atitude de não medo, de afrontamento.
Na estrofe 49, Vasco da Gama ousa interpela-lo, perguntando-lhe "quem és tu?", mostrando-se não aterrorizado, mas apenas "maravilhado" pela estatura do seu opositor. A partir daqui o episódio muda subitamente. O Gigante, assim abordado muda radicalmente e aceita responder identificando-se, contando a sua historia: o tom de voz "horrendo e grosso" passa agora a "voz pesada e amara". Explica que ele é o próprio cabo tormentoso, castigo que os deuses lhe deram pela sua paixão por Tétis que o despreza.
O drama do Adamastor é, pois, um drama de amor insatisfeito, logrado, frustrado, porque feito de terras, é o drama de um "eu" enganado, recalcado, que se revela amargamente quando convidado a identificar-se, reconhecendo-se dolorosamente.
O Adamastor condensa em si todos os medos que suscitava o Mar Tenebroso com o imaginário, domínio de forças sobrenaturais e maléficas.
Mais um obstáculo vencido à custa da coragem e inteligência de alguns portugueses.
Este episódio, que o ocupa, como já foi dito, um lugar central no poema, e no seu canto central é uma espécie de abóbada arquitectónica do poema, em que vem concentrar-se as grandes linhas da epopeia: o real-maravilhoso "dificuldades da passagem do cabo mitificado"; existências de profecias (Histórias de Portugal); é igualmente um episódio lírico ( uma história de amor) e igualmente um episódio trágico, feito da luta desproporcionada do Homem contra um ser mais poderoso e que pode facilmente esmagá-lo. É sobretudo um episódio épico, em que se consolida a vitória do Homem, " bicho da terra" sobre uma natureza poderosa.
É importante reparar ainda no jogo de contrastes que se verifica no episódio:
-"prosperadamente os ventos assoprando/mas hua nuvem...
- aspecto gigantesco do Adamastor/ pequenez dos marinheiros
- tom de voz "horrendo e grosso"/ voz "pesada e amara"
- profecias trágicas /história lírica
- força brutal do Gigante/ fragilidade da Ninfa
- violência/ suavidade amorosa.
- A Doença- O Escorbuto
Uma última e grande dificuldade prende-se com a grande permanência no mar, com todas as suas implicações, sacrificaria muitas vidas, senão a maior parte delas.
A falta de alimentos frescos abordo das naus, causada pelas largas temporada sem verem terra e se puderem abastecer, fazia depender a tripulação de alimentos conservados em sal, como peixe seco e de uma espécie de pão ( o biscoito). Daí a carência grave de vitaminas sobretudo da vitamina C, presente apenas na fruta e nos vegetais. A sua falta causa erupções na pele, queda de cabelo, hemorragias internas e cutâneas, inchamento e sangramento das gengivas. A doença era o escorbuto, "doença crua e feia", que a Gama descreve de modo impressionantemente realista, e que provocara a morte de tantos companheiros, longe da pátria amada.
A descrição, talvez demasiado naturalista, que o poeta faz da doença é fruto da longa a experiência em viagens marítimas; dos detalhes mórbidos, através da evocação de sensações visuais e olfactivas, contribuem para causar emoção e repulsa ao leitor.
Tal panorama leva o poeta a um desabafo filosófico sobre a precariedade da vida e sobre a morte, que pode surgir em qualquer momento e que representa um ponto final : "Assim no céu sereno se despensa;/ co esta condição, pesada e dura,/ Nacemos: o pesar terá firmeza, / Mas o bem logo muda a Natureza" (V, est.83)
"Quão fácil é ao corpo a sepultura !" ( V. Est.83)
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